O que podemos fazer quando ficamos com raiva? Buddha descreveu uma variedade de técnicas para desenvolver a paciência. Muitas delas são encontradas no Guia para o Modo de Vida do Bodhisattva, do grande sábio indiano Shantideva. O capitulo seis é um dos capítulos mais longos do livro, e ensina como evitar a raiva e cultivar a paciência.
Primeiro deve aprender as técnicas para lidar com a raiva. Depois, praticá-las em nossas meditações. Isto ajuda a aumentar a nossa familiaridade e ter confiança nessas novas maneiras de perceber as coisas. Ao praticar estas técnicas em um ambiente pacífico — sentados em nossas almofadas de meditação - construiremos um repertório de meios alternativos de percepção de situações que normalmente nos deixam com raiva.
É importante treinarmos essas técnicas quando não estamos com raiva. É como aprender a dirigir. Não vamos direto à auto-estrada no nosso primeiro dia na auto-escola, porque estamos despreparados e sem habilidade. Ao invés disto, dirigimos ao redor do estacionamento para ficarmos familiarizados com o acelerador, os freios e o volante. Praticando inicialmente num ambiente seguro, seremos capazes de lidar com o carro em situações mais perigosas no futuro.
De maneira semelhante, primeiro praticamos a paciência quando não estamos numa situação de conflito. Fazemos isto através de lembranças de experiências anteriores — situações em que explodimos de raiva, ou eventos que até agora nos deixa hostis ou magoados só em lembrá-los. Depois, aplicamos as técnicas: repassamos um vídeo mental do evento, mas tentamos pensar nele de maneira diferente. Ao rever a situação com uma nova perspectiva, a raiva diminui. Então poderemos também antever a nós mesmos respondendo ao outro de maneira diferente.
Fazer isto não só nos ajuda a dissolver mágoas e rancores passados, mas também nos familiariza com as técnicas que podemos aplicar em situações semelhantes no futuro. Então, sempre que uma situação ocorrer em nossas vidas, e sentirmos nossa raiva surgir, podemos selecionar uma técnica e aplicá-la.
Às vezes, é difícil dissolver nossa raiva mesmo quando estamos num ambiente pacífico, porque ficamos presos nas armadilhas de nossas emoções e conceitos equivocados do passado. Mas se aos poucos aprendermos a subjugá-los, então quando formos ao trabalho, à escola ou às reuniões familiares, teremos boas chances de trabalhar a nossa raiva quando ela surgir. Com uma prática constante, seremos até capazes de evitar que a raiva sequer surja.
Subjugar a raiva é um processo lento e firme. Ao ouvir uma ou duas coisas hoje, não espere que sua raiva se vá para sempre a partir de amanhã. Reagir com raiva é um mau hábito profundamente enraizado, e como todos os maus hábitos, leva tempo para ser removido. Temos de nos esforçar para desenvolvermos a paciência.
Além disso, precisamos aprender a ser pacientes conosco mesmos. Às vezes podemos ficar com raiva de nós mesmos por ter perdido a calma com alguém. "Eu sou tão mau. Eu sou horrível. Eu estou freqüentando há um mês os ensinamentos budistas e ainda fico com raiva. O que há de errado comigo?" Pensando assim só compõe o problema. Não somos "culpados, maus ou sem esperança" por ter ficado com raiva. Simplesmente não estamos bem treinados na paciência. Aliás, a paciência é uma qualidade que só podemos desenvolver com prática e tempo.
Além de aumentar nossa paciência, tolerância e sabedoria — qualidades que torna nossas mentes claras — é bom aprendermos a nos comunicar claramente com os outros. Atualmente, as universidades, as empresas e os programas de educação de adultos conduzem aulas de comunicação, treinamento de positividade e resolução de conflitos. Enquanto as técnicas budistas ajudam a pacificar a raiva interna, estes cursos ensinam técnicas para ouvir e se expressar eficazmente.
Antídotos para a raiva
Vejamos alguns exemplos examinando meios de como lidar com a raiva. Receber críticas freqüentemente aciona a nossa raiva. Alguém aqui foi criticado hoje? Eu não ficaria surpresa se todos levantassem as mãos. Geralmente, recebemos críticas com facilidade. Nós precisamos trabalhar tanto para conseguir algumas coisas — como dinheiro — mas a crítica vem sem nem se precisar pedir!
Quando somos criticados, normalmente sentimos que somos as únicas pessoas em que os outros descarregam, não é? "Eu faço o melhor que posso, mas o patrão sempre deixa passar as falhas dos outros, e inevitavelmente nota as minhas. Tanta gente implica comigo."
No entanto, conversando com os outros, notaremos que quase todos sentem que foram muito criticados. Não acontece só conosco. Nossos problemas parecem maiores do que os dos outros porque somos muito autocentrados.
Quando alguém nos critica, nossa reação instantânea é a raiva. O que aciona esta resposta? É a nossa concepção da situação. Embora possamos não estar conscientes disto, nós mantemos o ponto de vista: "Eu sou perfeito. Se cometer erros, eles são pequenos. Esta pessoa não compreendeu nada da situação. Ela está exagerando meu único e pequeno erro e sai gritando a altos brados para o mundo inteiro! Ela está muita errada!”
Esta é uma descrição ultra-simplificada do que está acontecendo dentro de nós, mas se estivermos conscientes, vamos perceber que sentimos assim. Mas estarão certos estes conceitos? Somos perfeitos ou quase perfeitos? Obviamente que não.
Tomemos uma situação onde cometemos um erro e alguém o nota. Agora, se aquela pessoa chegasse e nos dissesse que temos um nariz em nosso rosto, nós ficaríamos com raiva? Não. Por que não? Porque é óbvio que temos um nariz. Está lá para todo mundo ver. Alguém simplesmente o viu e comentou.
É a mesma coisa com nossos erros e defeitos. Eles estão lá, são óbvios, e o mundo os vê. Aquela pessoa só está comentando o que é evidente para ela e para os outros. Porque devemos ficar com raiva? Se não nos aborrecemos quando alguém diz que temos um nariz, porque deveríamos nos aborrecer quando alguém diz que cometemos erros?
Nós ficaríamos mais relaxados aceitando-os. "Sim, você está certo, eu cometi um erro”. Ou, "Sim, eu tenho um mau hábito." Ao invés de encenar o ato de "Eu sou perfeito. Como ousa dizer isto?!", podemos simplesmente admiti-lo e nos desculpar. Ao dizer "Eu sinto muito", a situação fica completamente diluída.
É tão difícil dizer "Sinto muito”, não é? Achamos que estamos perdendo algo quando nos desculpamos, que diminuímos de valor, que somos menores. Sentimo-nos ligeiramente covardes, e tememos que a outra pessoa terá poder sobre nós porque admitimos nossos erros. Estes temores nos tornam defensivos.
Tudo isto é nossa projeção errada. Sermos capazes de nos desculpar indica nossa força interna. Somos suficientemente fortes e suficientemente honestos e auto-confiantes que não precisamos fingir que não temos defeitos. Podemos admitir nossos erros. Ter defeitos não faz de nós um objeto para a cesta do lixo! Tantas situações tensas podem ser diluídas com simples palavras como "Sinto muito”. Muito freqüentemente, tudo que a outra pessoa quer é que reconheçamos a sua dor e o nosso papel nela.
De maneira semelhante, quando os outros nos pedem desculpas, devemos aceitá-las. Este é um dos votos de bodhisattva. Depois que alguém nos pediu desculpas, se continuarmos a guardar rancor, estaremos nos atormentando. Se retaliarmos, o estaremos prejudicando. Qual a utilidade de qualquer coisa dessa? Que tipo de pessoa seremos se encontramos felicidade ao vingativamente impor sofrimento aos outros?
Vamos mudar ligeiramente de situação. Desta vez, somos criticados por algo que não fizemos. Ou cometemos um pequeno erro e a outra pessoa nos acusa de um erro enorme. Mesmo em tais casos, ainda não há motivo para ficar com raiva. É como alguém dizendo que temos chifres em nossas cabeças. Nós não temos chifres. A pessoa que diz isto está simplesmente exagerando a situação. O que ele está dizendo está fora do reino da realidade. Ele cometeu um erro. De maneira semelhante, quando alguém nos culpa injustamente, não há motivo para ficar com raiva ou deprimido, porque o que ele está dizendo é incorreto.
É claro que isto não significa que devemos simplesmente ficar ali passivos, enquanto o outro mente ou exagera, sem fazermos um esforço para corrigir o mal entendido. Cada situação precisa ser examinada separadamente, usando a sabedoria discriminatória. Em alguns casos, é melhor deixar de lado e nem tentar corrigir, nem mesmo depois. Mais tarde, o outro pode perceber seu erro. Mesmo se não percebê-lo, uma discussão ainda maior pode começar se tentarmos explicar o que aconteceu.
Por exemplo, se sua mãe está de mau humor e começa a implicar com você, é melhor deixar isto de lado. Perdoe-a. Se você tentar explicar, como ela já está irritada, ela pode ficar com mais raiva ainda. E estaríamos resmungando com a nossa mãe por ela estar resmungando conosco! Seria uma amolação ficar corrigindo todo mundo toda vez que ele ou ela dissesse algo impreciso. Além disso, ninguém gostaria de nos ter por perto.
Em outras situações, embora possa ser doloroso, devemos explicar ao outro os nossos atos e a evolução do mal entendido. É nossa responsabilidade fazer isto, e assim mitigar a sua raiva.
É melhor discutir o mal entendido ou discordância quando nem nós nem o outro estivermos no calor da raiva. Quando estamos com raiva, não nos expressamos bem e isto piora a situação. Se alguém grita conosco, geralmente não ouvimos o que está dizendo simplesmente porque esta maneira de falar nos desagrada. De forma semelhante, se falarmos aos outros com raiva, eles também não prestarão atenção em nós. Portanto, precisamos primeiro nos acalmar praticando alguma das técnicas de pacificar a raiva.
Em segundo lugar, quando a outra pessoa está com raiva, ela não ouve o que estamos dizendo. Nós não ouvimos os outros quando estamos inflamados porque naquele momento estamos dominados pela raiva. De maneira semelhante, deixe o outro se acalmar e aproxime-se dele mais tarde quando sua mente estiver mais aberta.
Ao explicarmos nossos atos e a evolução do mal entendido à outra pessoa, será muito mais eficaz falar gentilmente do que com antagonismos. Não temos nada a perder sendo humildes e oferecendo uma explicação honesta. Aliás, para as pessoas que têm os votos de bodhisattva, é nossa obrigação aliviar os sofrimentos daqueles que estão com raiva da gente. É cruel dizer com arrogância: "A sua raiva é problema seu", e ignorar alguém com que discutimos.
Assim, recordar o exemplo do nariz e dos chifres é um antídoto contra a raiva.
Agindo ou relaxando.
Uma outra técnica é também simples. Digamos que estamos numa situação horrível. Se pudermos corrigi-la, para que ficar com raiva? Podemos agir, podemos mudá-la. Por outro lado, se não pudermos alterar uma situação, para que ficar com raiva? Não há nada a ser feito, portanto estaremos melhor aceitando a situação e relaxando. Ficar agitado só aumenta o sofrimento que já está lá.
Esta técnica também é boa para as pessoas que se preocupam demais. Pergunte a si mesmo, "Eu posso fazer alguma coisa com relação a esta situação?" Se a resposta for sim, então não há necessidade de se preocupar. Aja. Se a resposta for não, novamente a preocupação é inútil. Relaxe e aceite a situação.
Causa e Efeito
Uma outra técnica para neutralizar a raiva é examinar como chegamos a nos envolver na situação desagradável. Muitas vezes sentimos que somos vítimas inocentes de pessoas injustas. "Pobre de mim, sou inocente. Não fiz nada e agora esta pessoa sórdida está se aproveitando de mim”!
Isto é uma mentalidade de vítima, não é? Quando ficamos com raiva, nos fazemos de vítimas. A outra pessoa não pode nos fazer de vítima. Não somos vítimas da raiva do outro. Somos vitimas de nossa própria raiva. Uma outra pessoa pode nos culpar, mas só nos tornamos vítimas quando concebemos a situação de uma certa maneira e depois ficamos com raiva daquilo que projetamos. O significado disto é muito profundo. Vejamos isto com mais profundidade.
"Pobre de mim! Eu não perturbei ninguém e agora estas pessoas estão descarregando em mim" Estará correta essa interpretação de nossa experiência? Ao invés de perder imediatamente a nossa calma e culpar o outro, vamos reconhecer que esta situação é um surgimento dependente. Ela depende tanto da outra pessoa quanto de nós.
Primeiro vai olhar para ver o que fizemos nesta vida para encontrar pessoas que nos tratam mal. Como entramos nesta situação? O que fizemos que aborreceu o outro para ele agir assim conosco? Precisamos ser muito honestos conosco. Talvez não sejamos tão inocentes assim. Talvez estivéssemos tentando manipular o outro e ele não caiu. Ele ficou aborrecido e agora nós bancamos o magoado e ofendido. Mas na realidade, nosso próprio comportamento fez surgir àquela situação.
Sendo introspectivos, notaremos nossos defeitos e poderemos corrigi-los. Então não vamos nos encontrar em tais situações desagradáveis no futuro.
Isto significa que nós assumimos a responsabilidade por estar naquela situação, independente do fato de a outra pessoa estar fazendo um alarde indevido, ou não. Reconhecendo nossos erros, ou motivações erradas, ficamos cientes de como o nosso comportamento afeta os outros. Evitando o comportamento destrutivo no futuro, não faremos com que o outro seja ativado para nos ferir.
Isto é só olhando ao que fizemos nesta vida para acionar o evento. Vamos agora olhar de uma perspectiva mais ampla, no curso de muitas vidas. Isto nos leva ao tópico do karma — ações intencionais. Nossas ações deixam marcas em nossa consciência. Estas marcas mais tarde amadurecem e influenciam as nossas experiências.
O que vivenciamos agora é resultado daquilo que fizemos em vidas passadas. Digamos que alguém esteja nos batendo. Isto significa que em vidas anteriores fizemos mal aos outros. Para experimentar aquele efeito agora, temos de ter feito algo anteriormente. Karma — ação e seu resultado — é como um bumerangue. O lançamos e ele volta até nós. Similarmente, se tratamos os outros de uma certa maneira, estamos colocando aquela energia no universo — e mais tarde ela retorna até nós.
Compreendendo isto nos permite aceitar a responsabilidade pela situação. Não somos vítima. Prejudicamos muitas outras pessoas no passado —— até mesmo nesta vida podemos ver que não temos agido como anjinhos. Ferimos os sentimentos dos outros, chutamos cachorros, quando éramos crianças brigamos com outras crianças no playground.
Agora estamos experimentando o resultado destes atos. Não há surpresa alguma: as marcas de nossas próprias ações negativas estão amadurecendo. Ao reconhecer isto, veremos que não há motivo para ficar com raiva da outra pessoa. Ela é apenas a condição cooperativa, enquanto nós criamos a causa principal para estarmos nesta situação.
Não interprete isto mal e masoquistamente, nem se culpe por tudo. É uma maneira extrema de pensar: "Eu sou uma pessoa horrível. Todos podem me bater e tirar vantagem de mim porque isto é tudo o que mereço". Tal ponto de vista é completamente incorreto.
Ao contrário, é melhor reconhecer, "Sim, eu feri aos outros no passado. Agora o resultado está voltando a mim. Se eu não gosto desta experiência, então tenho de ser cuidadoso ao agir com as outras pessoas para que eu não crie a causa para novamente encontrar situações dolorosas como esta".
Assim, aprenderemos com nossos erros. Não é importante lembrarmos exatamente qual foi a nossa ação numa vida passada que resultou em nossos problemas atuais. Uma sensação geral dos tipos de ações que devemos ter feito no passado para precipitar a ocorrência presente é suficiente. Depois, podemos fazer uma forte determinação para não repetir tais ações no futuro.
Quem estiver interessado em aprender mais sobre o karma e seus efeitos, deve ler o livro A Roda das Armas Afiadas de Dharmarakshita. Este pequeno livro explica os elos entre nossas experiências atuais e nossos atos passados. Ele também nos encoraja a abandonar a atitude egoísta que nos leva a agir negativamente.
Treinando-nos a pensar assim, podemos transformar más situações no caminho da iluminação. Como? Pensando nessas situações de maneira construtiva; aprendemos com nossos erros ao invés de cair na armadilha da mentalidade de vitima.
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