Bokar Rinpoche nasceu de uma família de pastores nômades do Tibete, no ano de 1940. Foi reconhecido aos quatro anos de idade como o tülku do anterior Bokar Rinpoche, pelo 16º Karmapa, e estudou nos monastérios de Bokar e Tsurphu. Em face da invasão chinesa do Tibete, deixou sua terra natal aos 20 anos e tornou-se discípulo do grande yogi e mestre tibetano Kalu Rinpoche, completando, sob sua direção, duas vezes o tradicional retiro de três anos, no mosteiro de Sonada, na Índia. Por suas notáveis qualidades e profunda e autêntica realização, sucedeu a Kalu Rinpoche como chefe da linhagem Shangpa Kagyü, uma das oito grandes linhagens originais pelas quais o budismo passou da Índia para o Tibete.
Fundou em Mirik o seu próprio mosteiros, próximo ao de Kalu Rinpoche, especialmente destinado à prática de Kalachakra. É considerado, hoje, um dos principais mestres de meditação da linhagem Kagyü, tendo sido escolhido por Kalu Rinpoche para dirigir os centros de retiro de Sonada, e por S.S. o 16º Karmapa para dirigir o centro de retiro de Rumtek, no Sikkhim, nova sede dos Karmapas.
Do puro ao impuro
O Dharma é um processo que permite passar do estado do ser comum ao estado do ser desperto, que se chama Buddha. Não se poderá captar o alcance do Dharma e sua função profunda caso não se compreenda esse processo, cujos princípios são expressos em termos de purificação: base da purificação, objeto da purificação, agente purificador, resultado da purificação.
A base da purificação
Nossa própria mente, na sua verdadeira natureza, é a mente em si, semelhante ao modo de ser da mente de todos os seres. Sendo assim, não está maculada por impurezas. Entretanto, encontra-se agora impregnada de numerosos condicionamentos passageiros que, embora não afetem a sua essência, produzem a ilusão e o sofrimento.
A essência da mente é o que se chama de "coração do despertar". Apesar de ser pura, pela nossa ausência de realização do que ela é, coração do despertar e impurezas ilusórias encontram-se misturadas. Essa mistura constitui a base da purificação, semelhante a um tecido branco maculado por manchas. O tecido pode voltar a ser branco graças ao fato de a brancura ser a sua natureza. Da mesma forma, a pureza é a natureza de nossa mente e nós podemos recobrá-la. Um carvão, ao contrário, não tem qualquer chance de se tornar branco, pois é originalmente negro. Se a ilusão, a dualidade e o sofrimento fossem a natureza de nossa mente, não teríamos qualquer possibilidade de nos livrarmos delas.
O objeto da purificação
O objeto da purificação é o que se deve eliminar, ou seja, as impurezas ilusórias, semelhantes as manchas que recobrem o tecido, mas que não fazem parte da sua natureza. Essas impurezas não têm realidade própria, motivo pelo qual podemos nos desembaraçar delas. Se fossem dotadas de uma existência em si, isso seria impossível; mas, são contingentes, de natureza ilusórios, uns simples erro. A sua raiz é a dualidade "aprendido-aprendendo": no exterior, as aparências apreendidas como objeto; no interior, a mente aprendendo enquanto sujeito. Esta polaridade acarreta a produção de emoções conflituosas (cólera, aversão, desejo, apego, cegueira, ciúme, possessividade, orgulho, etc) e de aparências ilusórias, das quais provem, por sua vez, o karma e o sofrimento. E, portanto a dualidade, a base sobre a qual se edifica o processo, que deve ser principalmente eliminada.
O objeto apreendido exteriormente reveste-se de seis aspectos, correspondentes aos seis sentidos: as formas para a vista, os sons para o ouvido, os contatos para o tato, os objetos mentais para o mental.
O sujeito que os aprende interiormente divide-se igualmente em seis consciências: visual, auditiva, olfativa, gustativa, táctil, mental. É dessa maneira que o espírito funciona na ilusão: seis objetos e seis consciências aprendidas como realidades separadas; esta separação é o espaço no qual se inscreve o jogo das emoções conflituosas.
Esses seis objetos e essas seis consciências são, no entanto, desprovidas de uma entidade própria. No processo de percepção de uma forma, por exemplo, incorremos em erro ao perceber como duas entidades independentes o objeto percebido e a mente que percebe. Na realidade, a forma, percebida como objeto, nada mais é do que a manifestação do aspecto "claridade" da mente, enquanto que o eu-sujeito nada mais é do que o aspecto "vacuidade" dessa mente. No mecanismo de ilusão chega-se, contudo, à situação de olhar-se como sendo outro. É um pouco como o que ocorre quando caminhamos ao sol: nossa sombra destaca-se de nós e aparece como outro.
O objeto apreendido exteriormente e o sujeito que o apreende interiormente não estão, na verdade, jamais separados: não há dualidade. Embora o sujeito e o objeto não sejam duas coisas distintas, como não percebemos esse fato, criamos uma dualidade conosco, o que produz um jogo de emoções conflituosas e pensamentos ilusórios. Assim, o que devemos purificar é essa polaridade de eu-outro.
O agente purificador
Para lavar um tecido das manchas que o recobrem é necessário utilizar diferentes produtos: água, detergente ou sabão. Da mesma maneira, para que se opere a purificação de nossa mente, um agente é necessário: o Dharma. Todas as suas etapas, todos os aspectos que o compõem, todas as meditações que nele são ensinadas participam desta única função purificadora. Quer sejam a tomada de refúgio, as práticas preliminares, a pacificação mental (shine) e a visão superior (lhaktong), as fases de criação e de realização nas meditações do Vajrayana, enfim o Mahamudra, tudo visa ao mesmo objetivo.
Pelo Dharma são inicialmente dissipados as emoções conflituosas e os pensamentos ilusórios mais evidentes. Depois, progressivamente, os seus aspectos mais subtis, até, finalmente, a eliminação do ultimo obscurecimento, o véu que recobre o conhecimento, graças a última meditação, a que conduz ao despertar final: a "contemplação semelhante ao vajra".
Resultado da purificação
Quando a mente esta totalmente purificada da dualidade sujeito-objeto, revela-se o fruto: a realização da verdade não-dual do modo de ser da mente, cuja natureza não é diferente dos três corpos do despertar, corpo absoluto (dharmakaya), corpo de gloria (sambhogakaya) e corpo da emanação (nirmanakaya). Esses três corpos já estavam presentes na base de purificação, mas em estado latente. No nível do resultado, eles são atualizados, revelados em sua plenitude e em sua pureza.
Do ponto de vista do despertar, de fato não ha separação, nenhuma noção de produção, de diferenciação ou de classificação. De um ponto de vista relativo, distinguem-se as três modalidades aparentes que são os três corpos:
· O dharmakaya corresponde ao aspecto vacuidade da mente desperta e é, portanto, desprovido de forma, cores, etc. É também o corpo que se diz obtido para beneficio próprio. Pelo poder da compaixão e dos desejos dos Buddhas e ao mesmo tempo pelo mérito dos seres, do dharmakaya se manifestam os dois corpos formais.
· O sambhogakaya aparece para os seres de karma muito puro, em campos de manifestação diferentes do nosso. A transmissão do Dharma, nesse nível, não se faz por ensinamentos que necessitam da palavra e da escuta. O sambhogakaya simplesmente manifesta-se e os bodhisattvas que compõem o seu grupo de discípulos compreendem o sentido de tudo que deve ser transmitido.
· O nirmanakaya é a manifestação do despertar nos domínios da manifestação ordinária, para guiar os seres de karma impuro. É o caso, por exemplo, do Buddha Shakyamuni, que vem à terra, gira a roda do Dharma e, por isso, faz com que os seres ingressem no caminho da liberação. Enquanto os dois corpos formais realizam o bem dos seres, a mente de Buddha não produz esforço, não engendra intenção, nem experimenta dificuldade. É uma atividade totalmente espontânea, semelhante a irradiação do sol, que resulta dos desejos, da motivação e dos méritos anteriores.
Embora os aspectos dos três corpos difiram, a sua essência é una. O que são três aspectos numa só essência, podemos compreender por um exemplo. A lua no céu é semelhante ao dharmakaya, seus raios semelhantes ao sambhogakaya, e seu reflexo na água semelhante ao nirmanakaya. A lua, os raios e o reflexo, ainda que pareçam diferentes, são uma única e mesma essência.
Assim, a base de purificação é a nossa mente de ser ordinário impuro, mas dotado das potencialidades de despertar. Os objetos da purificação são as impurezas contingentes nascidas da polaridade sujeito-objeto. O agente de purificação é o Dharma. O resultado da purificação é a realização do modo de ser não dual, a atualização do despertar.
(Bokar Rinpoche. Tchenrezi: O Senhor da Grande Compaixão. Traduzido por Murillo Nunes de Azevedo;
revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1996. Pág. 39-44.)
Porquê meditar
Os homens são afligidos por sofrimentos, angústias e medos inumeráveis que são incapazes de evitar. A meditação tem por função eliminar esses sofrimentos e essas angústias. Pensamos, geralmente, que felicidade e sofrimento surgem de circunstâncias exteriores. Sempre atarefados, de uma ou de outra maneira, a reorganizar o mundo, tentamos afastar um pouco de sofrimento aqui, acrescentar um pouco de felicidade ali, sem jamais alcançar o resultado desejado. O ponto de vista budista, que também é o ponto de vista da meditação, considera, ao contrário, que felicidades e sofrimentos não dependem fundamentalmente das circunstâncias exteriores, mas da própria mente. Uma atitude de mente positiva engendra a felicidade, uma atitude negativa produz o sofrimento. Como compreender esse engano que nos faz procurar fora àquilo que podemos encontrar dentro? Uma pessoa de rosto limpo e nítido ao se olhar em um espelho vê um rosto limpo e nítido. Aquele cujo rosto é sujo e maculado de lama vê no espelho um rosto sujo e maculado. Em verdade, o reflexo não tem existência; só o rosto existe. Esquecendo o rosto, tomamos seu reflexo por real. A natureza positiva ou negativa de nossa mente se reflete nas aparências exteriores que nossa própria mente nos envia. A manifestação exterior é uma resposta à qualidade de nosso mundo interior.
A felicidade que desejamos não virá da reestruturação do mundo que nos cerca, mas da reforma de nosso mundo interior. O indesejável sofrimento só cessará na medida em que não embotarmos nossa mente com todos os tipos de negatividades. Enquanto não reconhecermos que felicidades e sofrimentos têm sua origem em nossa própria mente, enquanto não soubermos distinguir o que, por nossa mente, é proveitoso ou nocivo, e que a deixamos à sua insalubridade ordinária, permanecemos impotentes para estabelecer um estado de felicidade autêntica, impotentes para evitar as contínuas ressurgências do sofrimento. Qualquer que seja nossa esperança, ela é sempre decepcionada.
Se, ao descobrirmos no espelho a sujidade de nosso rosto, decidíssemos lavar o espelho, mesmo que esfregássemos fortemente durante anos com sabão e água em abundância, nada aconteceria, nem a mínima sujeira, nem a mínima mancha desapareceria do reflexo. Por falta de orientarmos nossos esforços para o objeto justo, eles permanecem perfeitamente vãos. Eis por que o budismo e a meditação têm por primordial compreender que felicidades e sofrimentos não dependem fundamentalmente do mundo exterior, mas de nossa própria mente. Na falta dessa compreensão, nunca nos voltaríamos para o interior e continuaríamos a investir nossa energia e nossa esperança numa vã busca exterior. Uma vez adquirida essa compreensão, podemos lavar nosso rosto: o reflexo surgirá limpo no espelho.
As condições auxiliares
A meditação concerne à mente. No entanto, para meditar, é preciso reunir um certo número de condições auxiliares sem as quais nossa empreitada não seria frutuosa. Em primeiro lugar, após ter compreendido que felicidades e sofrimentos dependem essencialmente de nossa mente, é preciso estar penetrado de uma viva aspiração a meditar ao mesmo tempo em que experimentar alegria por essa perspectiva. Em segundo lugar, é indispensável ser guiado por um instrutor que nos ensine com meditar. Se nós nos propomos a visitar um certo lugar num país para nós desconhecido sem a ajuda de alguém que tenha familiaridade com ele, nos será impossível atingir nosso destino. Entregues à aventura, nós nos desgarraríamos ou nos perderíamos em longuíssimos desvios. Sem mestre para guiar nossa meditação, nós nos desgarraríamos em caminhos tortuosos. Em terceiro lugar, o local onde meditamos reveste uma certa importância, em particular para os principiantes. As circunstâncias nas quais vivemos exercem atualmente sobre nós uma influência muito opressora e acarretam um abundante fluxo de pensamentos que paralisa nossas tentativas de meditação. É necessário, portanto, retirar-se para um local ao menos relativamente afastado das atividades mundanas. Um animal selvagem que vive nas florestas de alta montanha não suportaria de modo algum a agitação da cidade. Nossa mente de meditação também não pode se desenvolver em condições em que reinam como soberanas as distrações e as solicitações exteriores permanentes.
Como meditar
Estabelecidos em um local isolado, é-nos necessário libertar nosso corpo de toda atividade, libertar nossa mente dos pensamentos concernentes ao passado e ao futuro, libertar nossa palavra de toda conversação profana. Nosso corpo, nossa palavra e nossa mente são deixados em repouso, naturalmente à vontade.
A postura corporal é importante. Nosso corpo é percorrido por uma rede de canais subtis (nadis) nos quais circulam os ventos subtis (prana). A produção dos pensamentos está ligada à circulação desses ventos. A agitação do corpo engendra a agitação dos canais e dos ventos, que, por sua vez, favorece as turbulências mentais.
A atividade oral, a formação dos sons, também depende da atividade dos ventos. Falar em demasia perturba-os, aumentando a produção de pensamento. Guardar o silêncio favorece a meditação.
Preservar a calma da palavra e o corpo predispõe, portanto, à calma interior evitando a criação de um fluxo de pensamentos demasiado abundante. Tal como um cavaleiro, controlando bem sua montaria, está sentado comodamente, quando o corpo e a palavra estão controlados, a mente está predisposta ao repouso.
Falsas idéias são às vezes alimentadas quanto ao que é a meditação. Para alguns, meditar é passar em revista e analisar os acontecimentos de sua vida quotidiana ocorridos nos dias, meses e anos passados. Para outros, meditar é encarar o porvir, refletir sobre a conduta a manter, formar projetos a mais ou menos longo prazo. Essas duas abordagens são evidentemente errôneas. A produção de pensamentos concernentes ao passado ou ao futuro está por si mesma em contradição com estabelecimento da mente na calma, mesmo quando o corpo e a palavra permanecessem inativos. Na medida em que o exercício não conduz à paz interior, não é meditação.
Outras pessoas, acreditando meditar, não vão a busca nem do passado nem do futuro. Instalam-se, isto sim, num estado vago e impreciso, vizinho do tipo de torpor que uma grande fadiga engendra. A mente permanece numa indeterminação obscura, estado que pode parecer positivo na medida em que proporciona, antes de tudo, uma impressão de repouso benfazejo; todavia, falta-lhe total lucidez e não tarda a resvalar para o sono, a menos que não desemboque numa corrente de pensamentos descontrolados.
A verdadeira meditação evita esses escolhos: a mente despreocupada com o passado, sem encarar o futuro, enraizado num presente lúcido, claro e calmo. A noite só permite uma percepção muito obscura do mar, enquanto o dia deixa ver com precisão todos os detalhes: as cores, as ondas, a espuma, os rochedos, o fundo submarino. Nossa mente é semelhante ao mar. O meditador deve estar plenamente consciente da situação interior, percebida de modo tão claro quanto o mar à luz do dia. Ele deixa, então, sua mente tranqüila e as ondas acalmam-se naturalmente. É a calma interior, tecnicamente denominada pacificação mental (em tibetano shine).
Inúmeros métodos são utilizados para desenvolver shine. Um principiante pode, por exemplo, visualizar uma pequena esfera de luz branca ao nível da fronte e nela concentrar-se no melhor de suas capacidades. Podemos também nos concentrar no vaivém da respiração, ou ainda, sem tomar um objeto de concentração particular, deixar a mente sem distração. Podemos utilizar esses três métodos e, por aí, aprender progressivamente a meditar.
Por sinal, é importante abordar uma sessão de meditação com a mente muito ampla, muita aberta, sem estar fixada sobre a esperança que ela seja boa nem o temor que não o seja. A mente deve estar tranqüila, disponível e vasta. Esperar uma boa meditação ou temer uma ruim são, em si mesmo, entraves dos quais precisamos estar libertos.
A meditação dá-nos, às vezes, experiências de felicidade e paz. Satisfeitos conosco regozijamo-nos por termos feito uma boa meditação. Às vezes, ao contrário, nossa mente permanece muito perturbada, durante toda a sessão, por numerosos pensamentos e, tristemente, julgamo-nos péssimos meditadores. Regozijar-se por uma boa meditação e ligar-se a experiências agradáveis, assim como se entristecer por uma meditação ruim são duas atitudes falsas. Meditação boa ou ruim, o importante é simplesmente meditar.
Algumas pessoas, quando de seus começos, obtêm rapidamente boas experiências; estas se ligam a estas, esperam sua repetição constante e, quando não é o caso, decepcionado, abandonam a meditação. No transcurso de uma longa viagem, percorremos ora bons caminhos, ora ruins. Se os encantos de uma porção agradável servissem de incentivo para nos determos para deles usufruir continuamente, ou então, se as dificuldades do caminho ruim nos fizessem renunciar a avançar, nunca alcançaríamos nosso objetivo. Caminho bom ou ruim é mister avançar. Da mesma forma, no caminho da meditação é necessário perseverar sem preocupar-se com as dificuldades nem se ligar aos momentos felizes.
É preferível, para os principiantes, limitar-se a curtas sessões de dez ou quinze minutos. Mesmo que a meditação seja boa, devemos parar. Depois, se dispusermos de tempo necessário, faremos uma segunda sessão curta após uma pausa. Melhor é proceder por uma sucessão de curtas sessões do que se engajar numa longa sessão que, mesmo boa no início, corre o risco de resvalar para a dificuldade e cansar o meditador.
Os frutos da meditação
Num primeiro momento, nossa mente não poderá permanecer estável e em repouso por muito tempo. A perseverança e a regularidade levam, no entanto, a desenvolver progressivamente a calma e a estabilidade. Sentimo-nos também mais à vontade física e interiormente. Por outro lado, o império das circunstâncias exteriores, felizes ou difíceis, atualmente muito forte sobre nós, diminui e ficamos menos submetidos a elas. O aprofundamento de nossa experiência da verdadeira natureza da mente tem por efeito o fato de que o mundo exterior perde sua influência sobre nós e torna-se incapaz de prejudicar-nos.
O fruto último da meditação é a obtenção do Perfeito Despertar, o Estado de Buddha. Estamos, então, totalmente libertos do ciclo das existências condicionadas assim como dos sofrimentos que formam seu tecido, ao mesmo tempo em que possuímos o poder de ajudar efetivamente o próximo.
O caminho da meditação comporta duas fases: a primeira dita shine (a pacificação mental), acalmando gradualmente nossa agitação interior; a segunda dita lhaktong (a visão superior), levando a desenraizar o apego egocêntrico, fundamento do ciclo das existências. A via interior, e só ela, conduz ao Despertar; nenhuma substância, nenhuma invenção exterior possui esse poder.
Conclusão
Engajar-se na via da meditação implica o conhecimento de sua finalidade, os meios utilizados, e os resultados obtidos:
· Reconhecer que a fonte de todo sofrimento e de toda felicidade é a própria mente e, por conseqüência, só um trabalho sobre a mente permite eliminar o primeiro e estabelecer a segunda de maneira autêntica e definitiva;
· Conhecer as condições auxiliares necessárias: o desejo de meditar, um instrutor qualificado, um local retirado;
· Saber colocar sua mente em meditação: sem seguir os pensamentos do passado ou do futuro, estabelecer no presente sua mente, aberta, calma, lúcida, e fixá-la sobre o objeto de concentração escolhido;
· Saber quais são os frutos temporários e últimos da meditação: a serenidade, a liberdade em face das circunstâncias, e, enfim, o Estado de Buddha.
O ego e os cinco venenos
Nossa mente é fundamentalmente infinita, não é limitada pelas opressões de uma existência individualizada. Não existe ego. Conquanto ele não exista, nós nos assimilamos a esse ego ilusório. Ele é o centro e a pedra de toque de todas as nossas relações: tudo o que reconforta sua existência, tudo o que lhe é favorável, torna-se objeto de apego; tudo o que, ao contrário, ameaça sua integridade torna-se inimigo, fonte de aversão. Por sinal, a simples presença do ego oculta a verdadeira natureza de nossa mente e dos fenômenos, torna-nos incapaz de discriminar entre o real e o ilusório. Somos, nesse sentido, prisioneiros da opacidade mental [ignorância]. O ego também engendra a inveja em relação a toda pessoa considerada como um rival possível, em qualquer domínio que seja. Enfim, o ego deseja ser superior aos outros; é o orgulho.
Apego, aversão, opacidade mental, inveja, orgulho são os cinco venenos de base produzidos pela apreensão egocêntrica.
Eles constituem um obstáculo irrevogável à paz interior, criando sem descontinuidade inquietudes, perturbações, dificuldades, angústias e sofrimentos. Não apenas para si mesmo, mas ainda para o próximo. É evidente, por exemplo, que a cólera é sofrimento para si mesmo e para aquele a quem ela se dirige, afligido por um rosto furioso, imprecações e palavras ofensivas.
O ego e os cinco venenos levam-nos, além do mais, a realizar atos de caráter nocivo que imprimem em nossa mente um potencial kármico negativo, cuja maturação se exprimirá sob a forma de circunstâncias dolorosas.
O ego e seu séqüito são nossos verdadeiros inimigos, não inimigos visíveis que as armas ou algum objeto material poderiam vencer, mas inimigos invisíveis cuja derrota só a meditação e o caminho espiritual provocam. A ciência contemporânea criou armas de extremo poder, bombas capazes de matar de uma vez centenas de milhares de pessoas. Mas nenhuma bomba pode aniquilar o ego e os cinco venenos. Neste campo, a verdadeira bomba atômica é a meditação.
A postura corporal
A postura completa compreende sete pontos:
· As pernas cruzadas na base adamantina [postura do lótus], o pé esquerdo sobre a coxa direita, depois o pé direito sobre a coxa esquerda;
· A coluna vertebral ereta como uma flecha;
· Os ombros afastados, como asas de um abutre;
· As mãos no mudra da meditação, mão direita repousada sobre a mão esquerda,
· Palmas para cima;
· O queixo formando um ângulo reto com o pescoço;
· O olhar fixo no vago, em oblíquo para baixo, na direção de um ponto virtual situado quatro ou oito dedos à frente da ponta do nariz;
· A boca e a língua relaxadas.
Longe de ser arbitrário, cada ponto da postura tem sua razão de ser em relação ao sistema de energias subtis que percorrem nosso corpo, estreitamente ligado à produção dos pensamentos.
Posicionar a mente
Uma vez estabelecido o corpo na postura correta, deve-se desde logo evitar a tensão mental proveniente da fixação sobre a idéia "eu medito". A mente permanece relaxada, ampla, límpida, sem se desgarrar nem para as lembranças, nem para os pensamentos concernentes ao futuro, sem se equivocar também quanto à realidade dos pensamentos presentes. Ela permanece num estado de vigilância, sem distração, aberta a si mesma tal como ela se apresenta, sem tensão. O meditador não deve experimentar a sensação de estar num desfiladeiro estreito e escuro, obstruído pela névoa, mas, antes, no cume de uma montanha, lá onde a altitude e a limpidez do céu permitem ver claramente todo o horizonte.
Essa maneira de posicionar a mente é essencial. Temos com freqüência a tendência de abordar a meditação muito tensa, ligando-nos a uma não-distração forçada. Sem saber, antes de tudo, relaxar nossa mente, deixá-la aberta e feliz, não é possível meditar. É uma condição obrigatória.
(meditação)
Exercícios de meditação
A mente uma vez calma aplicamo-nos à concentração sobre o objeto escolhido, em primeiro lugar no contexto da pacificação mental (sânsc. shamatha, tib. shine). Múltiplos métodos são possíveis. Vamos contemplar alguns deles.
Shine pode antes de tudo ser praticado utilizando um suporte, impuro ou puro.
A noção de suporte impuro refere-se a qualquer objeto de natureza ordinária que selecionamos para nele aplicarmos nossa concentração: uma montanha, uma colina, um edifício, uma mesa, um copo ou qualquer outro objeto. Pousamos nele nossa mente relaxada e sem distração.
Podemos, por exemplo, meditar sobre essa poltrona à nossa frente. Concentrar-se não significa aqui entregar-se a um exame discursivo, mesmo muito atento das características do objeto: sua forma, sua altura, sua superfície, os motivos do tecido que o cobre, a natureza e as nuanças desse tecido, etc. Também não se trata de projetar nossa mente como se ela viesse colocar-se no interior da poltrona. Simplesmente, nós próprios, estando a um certo local e a poltrona num outro, nossa mente pousa sobre o que ela vê, sem distração, sem ser arrebatada por outros pensamentos, sem tensão também.
(meditação)
Alguns dentre vocês conseguem assim, sem dúvida, estabilizar sua mente de maneira satisfatória sobre o objeto de concentração; outros estarão nele presentes por momentos e, às vezes, desgarrados em outros pensamentos, essa alternância podendo até mesmo ser muito rápida. De qualquer modo, não se trata de forçar a concentração, mas de trabalhar nas condições tais como elas se apresentam, relaxado e aberto à situação.
Um suporte puro, em segundo lugar, designa toda representação simbólica ou não, possuindo um caráter sagrado.
Podemos, por exemplo, visualizar no espaço à nossa frente, o corpo do Buddha, criando mentalmente uma imagem clara, luminosa, radiante, perfeitamente proporcionada, sobre a qual nós nos concentramos sem distração.
(meditação)
É provável que essa imagem apareça em nossa mente ora claramente, ora de maneira confusa e fugidia; ora ela estará mesmo totalmente ausente. Isso não tem grande importância. Tentar meditar assim é bom em si e a repetição regular do exercício conduzirá a uma visualização cada vez mais clara e estável. A alternância de clareza e confusão, e inclusive a impossibilidade de visualizar são fenômenos normais para principiantes. A perseverança afinará progressivamente suas capacidades.
Um outro suporte puro é imaginar um pequeno globo de luz (sânsc. bindu, tib. thigle) branco ao nível da fronte, muito vivo, muito brilhante. Esse suporte é visto como puro na medida em que o consideramos aqui como simbolicamente indiferenciado do mestre espiritual.
(meditação)
Enfim, shine pode ser praticado sem suporte. A mente é deixada livre, relaxada, ao mesmo tempo sem distração.
(meditação)
Vimos, assim, quatro possibilidades de concentração:
· Sobre um suporte impuro,
· Sobre um suporte puro:
o Seja o corpo do Buddha,
o Seja um pequeno globo de luz,
· Sem suporte.
Algumas pessoas terão sem dúvida descobertas umas afinidades mais particulares com o primeiro tipo de exercício, outras com o segundo, outras com o terceiro, outras com o quarto. Outras ainda não terão preferência marcada. No primeiro caso, o melhor é prosseguir a prática quotidiana utilizando o método de sua escolha. No segundo caso, você pode praticar cada um alternadamente. De qualquer maneira, são a regularidade e a perseverança que permitirão progredir no caminho da pacificação.
O tratamento dos pensamentos
Os principiantes, sem saber com exatidão o que é a meditação, criam a expectativa de uma calma perfeita, totalmente livre dos pensamentos. Temem sua vinda, e quando estes surgem desolam-se por sua incapacidade de meditar. Temer os pensamentos, irritar-se ou inquietar-se com seu aparecimento, crer que a falta de pensamentos é uma boa coisa em si, são erros que conduzem a um estado de frustração e culpa inútil.
A mente de um não-meditador, de um principiante e de um meditador confirmado é atravessada por pensamentos. Mas, a maneira de abordá-los varia de modo considerável de um para o outro.
Alguém que não pratica a meditação é, em sua relação com os pensamentos, semelhante a um cego, o rosto voltado para uma estrada longínqua. O cego é incapaz de ver se automóveis passam ou não na estrada. Da mesma forma, a pessoa comum, embora experimentando um sentimento vago de desconforto e mal estar interiores, não está, em absoluto, consciente da torrente de pensamentos que, no entanto, escoa sem interrupção.
Ao começarmos a meditar, descobrimos os olhos para ver, mas gostaríamos que não passasse nenhum automóvel na estrada. Vem um primeiro automóvel, nossa atenção decepciona-se. Um segundo, nova decepção. Um terceiro, irritamo-nos, etc. A esperança ingênua de uma estrada vazia é incessantemente enganada. Estamos ao mesmo tempo conscientes e infelizes com a sucessão dos veículos. Cada automóvel que passa é uma nova dificuldade. Revoltamo-nos contra um estado de coisas inevitável. Quando encaramos a meditação como um espaço desprovido de pensamentos cada pensamento que se apresenta contradiz com evidência esse esquema preconcebido; estamos em situação de fracasso quase permanente.
Quando, ao contrário, compreendemos bem em que consiste a meditação, vemos desfilar os automóveis, mas sem revolta nem recusa, sem ter decidido que a estrada deveria estar vazia. Não esperamos a ausência de veículos, assim como não nos apavoramos com sua presença. Os automóveis passam e os deixamos passar; eles não são nem nocivos, nem benéficos. Se os pensamentos elevam-se, deixamos que passem naturalmente, sem nos ligarmos a eles nem os condenando; se eles não se elevam, não encontramos aí objeto de satisfação particular. Uma abordagem sã dos pensamentos condiciona uma boa meditação.
As pessoas que compreendem mal a meditação crêem que todos os pensamentos devem cessar. Não podemos, de fato, estabelecer-nos num estado sem pensamentos. O fruto da meditação não é a ausência de pensamentos, mas o fato de que os pensamentos cessam de ser nocivos para nós. De inimigos, os pensamentos tornam-se amigos. Uma meditação ruim vem em geral da negligência das práticas preparatórias, mas também, estas tendo sido realizadas, da má compreensão da maneira justa de colocar a mente.
As pessoas ordinárias têm a mente perpetuamente distraída, dispersa. Quando meditamos, por outro lado, o maior impedimento vem das produções mentais sobreacrescidas, dos comentários sobre si mesmo e das pré-concepções. A meditação autêntica evita tanto a distração como os acréscimos mentais.
Distinção entre shine e lhaktong
A pacificação mental acalma e estabiliza a mente, mas a verdadeira natureza desta não é reconhecida. Não compreendemos o que ela é, e as perguntas fundamentais permanecem sem resposta, a não ser a título de hipótese intelectual. A visão superior (sânsc. vipashyana, tib. lhaktong) vai mais longe: estando a mente pacificada, ela reconhece sua própria essência, sem deixar lugar à incerteza. Ela conduz a uma experiência direta e evidente. Visto que se trata de um grau de compreensão superior à simples calma da mente, ela é denominada visão superior.
A pacificação mental, tanto quanto a visão superior, tem por objeto a mente. O que é visto, a mente, é idêntico, mas o modo de visão é diferente. A lua reflete-se à noite sobre a superfície de um recipiente cheio de água. Quando o recipiente está agitado, não percebemos, contudo, a forma da lua, mas uma simples luminosidade confusa. Ao deixarmos o recipiente em repouso, a superfície da água torna-se gradualmente calma e lisa. Essa fase corresponde à pacificação mental pela qual a mente desfaz-se da agitação dos pensamentos. Uma vez a água perfeitamente calma, pode-se nela ver de maneira clara o que se reflete e reconhecer a forma percebida pelo que ela é efetivamente. A mente tendo sido, da mesma forma, apaziguada pelo exercício da pacificação mental, a visão superior permite em seguida reconhecer sua natureza.
Prática de lhaktong
Tomemos inicialmente a postura corporal correta, sem tensão, depois coloquemos nossa mente num estado de shine aberto e relaxado. Experimentamos assim uma experiência de calma mesclada de um sentimento de felicidade. Procuremos, então, onde reside essa mente calma. Está ela em nossa cabeça, num local determinado de nosso corpo, ou em todo o nosso corpo? Em nosso coração? Em nosso cérebro? Qual é a essência dessa mente calma? Onde ela reside? Examinemos isso com muita atenção.
(meditação)
Tal exame conduz-nos, pelo caráter infrutuoso da investigação, a descobrir por experiência a não-localização da mente calma. Onde quer que a procuremos, não a encontramos em lugar algum. Deixemos agora o exame e retomemos shine como precedentemente.
(meditação)
A investigação não nos permitiu descobrir a mente onde quer que fosse. Entretanto, deixando de novo nossa mente em repouso, temos verdadeiramente o sentimento que existe uma mente em repouso; uma sensação de felicidade, de calma, de algo que existe; um sentimento de ser.
Quando não procedemos a um exame, experimentamos a existência dessa mente calma. Quando, em seguida, observamos a própria essência dessa calma não podemos dizer de maneira alguma: "é isso" ou "é aquilo". Somos completamente incapazes de descrever o que quer que seja por incapacidade de encontrar algo que pudéssemos denominar de mente calma. Mas, se concluíssemos que a mente calma não existe absolutamente, estaríamos em contradição com esse sentimento de ser que experimentamos ao deixar nossa mente em repouso. Somos levados à descoberta de um estado de ser indizível. Reconhecê-lo e fazer dele a experiência diretamente é o que denominamos lhaktong, a visão superior.
Esse reconhecimento só é agora possível pela alternância do repouso e do exame. Quando é alcançado um certo grau de meditação, esses dois estados não são, contudo, mais dissociados e o exercício da alternância torna-se supérfluo. Chegar a essa indissociação da mente calma e da mente que investiga é a visão superior no sentido pleno do termo. Todavia, proceder por alternância já é uma primeira abordagem.
Agora, todos podemos ver a escada iluminada pela lâmpada. Vejamo-la bem, depois façamos nascer em nossa mente o pensamento da escada, isto é, sua imagem.
(meditação)
O pensamento da escada está agora presente em nossa mente. De onde ele apareceu? De que lugar veio? Qual é sua fonte?
(meditação)
Examinando a origem desse pensamento, não podemos dizer que ela tenha vindo do exterior, como também não podemos descobrir sua fonte no interior de nosso organismo físico. O pensamento da escada não se introduziu de forma alguma em nossa mente à maneira de uma pessoa que, proveniente do exterior, entra num cômodo. Ele está ali sem ter vindo de lugar algum.
(meditação)
Somos impotentes para encontrar qualquer origem que seja para esse pensamento.
Quando, agora, o pensamento da escada está presente em nossa mente, onde ele reside? Aqui? Acolá? No exterior de nosso corpo, ou no interior? Examinemos atentamente. Quando uma pessoa entra num cômodo, ela chega do exterior, ultrapassa a soleira, em seguida permanece num local limitado e definido, o cômodo. Podemos do mesmo modo identificar um local limitado e definido onde permanece o pensamento?
(meditação)
Qual é a forma, não da imagem percebida mentalmente, mas do próprio pensamento? Qual é sua forma, seu tamanho? Podemos vê-la? Nossa investigação desemboca uma vez mais numa ausência.
Vejamos agora essas flores atentamente.
(meditação)
O pensamento da escada continua em sua mente enquanto ela está ocupada em observar as flores? No momento em que o pensamento da escada cessou como ele partiu?
Quando o pensamento da escada se formou em nossa mente, nós nos perguntamos se era à maneira de uma pessoa entrando num cômodo pela porta e depois lá permanecendo. Quando o pensamento da escada cessou, suplantado pelo pensamento das flores, como partiu? Do mesmo modo que se deixa um cômodo para ir a outro lugar?
(meditação)
De onde veio o pensamento das flores?
Vejamos agora essa estátua. O pensamento das flores continua ali? Para onde ele partiu?
(meditação)
Examinando de onde vinha o pensamento, não pudemos encontrar local de origem. Escrutando sua localização uma vez presente, não pudemos igualmente apreendê-lo, da mesma forma que, tendo cessado, não pudemos descobrir o lugar para onde ele teria partido.
Os pensamentos não vêm de parte alguma, não reside em parte alguma, não vão a parte alguma. Eles não têm, em si mesmos, nenhuma existência.
O tigre de pelúcia
Quando não conhecemos a natureza da mente, vivemos, no entanto, na convicção de que os pensamentos existem realmente. Sendo tomados por reais, tornam-se causa de sofrimento. Vemos pessoas a tal ponto atormentado por um pensamento que elas deixam de comer, tornam-se magras e pálidas, olhos cavos e sem expressão. Essas repercussões físicas ilustram bem a força dos pensamentos tomados por reais.
Fabricam-se, para uso das crianças, animais em pelúcia, às vezes assemelhando-se muito com os verdadeiros. Os tigres, os leões, os leopardos mostram numa mandíbula aberta presas ameaçadora, e fixam sobre seus presos olhos pavorosos. Uma criança bem pequena pode ter medo de um tigre de pelúcia, acreditando-se em presença de uma ameaça efetiva. Sua confusão é a única causa de seu sofrimento. Lá onde não há tigre, ela crê haver um. Inversamente, a mesma criancinha ficará muito feliz com um cavalo em pelúcia, concedendo-lhe uma existência real, investindo-o da gentileza e da doçura de um autêntico cavalo. Ao não reconhecermos a natureza de nossos pensamentos, somos semelhantes a essa criancinha: tomamos por real o que não é e, daí, experimenta sofrimentos e alegrias.
O meditador que, ao contrário, realiza o mahamudra, isto é, reconhece a verdadeira natureza de sua mente, é comparável a um adulto que não se enganara com uma imitação de tigre ou cavalo. "É bem feito, pensará o adulto; dir-se-ia um tigre, dir-se-ia um cavalo”.Mas ele não se equivoca quanto à realidade do objeto e não é, portanto, levado a reagir como o faria diante de um verdadeiro tigre ou de um verdadeiro cavalo. Ele está livre dos medos e das alegrias que a situação efetiva causaria. Assim também, para aquele que realizou o mahamudra, os pensamentos, cujo caráter irreal é desmascarado, não dão mais lugar a complicações emocionais: eles não engendram nem sofrimentos, nem alegrias.
Aparecem em nossa mente todos os tipos de pensamentos e imagens; mas eles não têm existência real. Lhaktong reconhece simultaneamente as manifestações mentais e sua ausência de existência real. Não se trata em absoluto de apagar a manifestação, nem renegar a faculdade criadora da mente, mas ver seu caráter desprovido de existência própria. Um falso tigre não deixa de aparecer com uma forma: é o aspecto manifestação. Saber, por outro lado, que ele não é real, corresponde ao aspecto vacuidade. A visão superior reconhece ao mesmo tempo a forma do tigre e sua irrealidade, a união da manifestação e da vacuidade.
Isso não significa em absoluto que a mente permanece desde então numa espécie de indiferença permanente, entediante e opaca. A mente experimenta, ao contrário, sua própria felicidade, sem medida comum com as alegrias ordinárias, a tal ponto que é considerada para além dos conceitos de alegria e não-alegria. A mente de um ser liberto está não apenas além do sofrimento, ela é por natureza e de maneira inalterável, paz, lucidez, inteligência, felicidade, amor e poder, infinitamente mais vivo do que o somos.
Tomar o remédio
Existem inúmeros métodos para praticar lhaktong, bem como existem inúmeros métodos de shine. Consideramos aqui duas abordagens:
· Analisar a natureza da mente calma;
· Determinar de onde vêm os pensamentos, onde eles residem, aonde vão.
Compreendê-las intelectualmente não é suficiente. É indispensável colocá-las em prática pela meditação. Não meditar e contentar-se em pensar que o que acaba de ser exposto é exato, seria estéril. Quando estamos enfermos, o médico identifica a enfermidade, prescreve os medicamentos, explica os efeitos esperados. Todavia, não nos curamos se nos contentamos com o diagnóstico, com ter bem compreendido quais medicamentos tomar, como tomá-los e o que resultará disso. Ainda é preciso efetivamente tomar o remédio prescrito para sarar. Também não basta compreender o que é a meditação, é preciso meditar.
Meditar alguns dias, alguns meses, até mesmo um ano, depois abandonar, também não dará frutos. Um enfermo deve tomar seus medicamentos até a cura completa. Se ele pára o tratamento, mesmo que este dure meses ou anos, o mal triunfará. Devemos prosseguir nossa meditação até que tenhamos alcançado uma realização efetiva e estável. Regularidade e perseverança são duas condições necessárias para uma meditação proveitosa.
(Bokar Rinpoche. Meditação: Conselhos aos Principiantes. Traduzido por Plínio Augusto Coelho;
revisão técnica de Antonio Carlos da R. Xavier. Brasília: ShiSil, 1997. Pág. 17-24, 33-35, 85-92, 123-130.
Lembre-se sempre que a vida é instável.
Que o tempo muda de repente para tempestade e trovoada.
Reforça, portanto o poder da sua mente.
Ofereça o tesouro de um pensamento generoso e de uma disciplina interior
Ao amigo que o acompanha para sempre.
Lembre-se que as marcas de cada um dos seus atos
Unem-se à mente, tal como a sua sombra se une ao corpo.
Evite, portanto os caminhos do mal·E cultivem uma atitude de bondade ativa.
Fixe o seu olhar sobre estas coisas de benefício eterno.
Meus amigos deixam-os hoje
Este conselho que é preciso seguir em minha memória.
Em breve nos encontraremos de novo
Gyelwa Gendün Gyatso (1475-1542), o 2º Dalai Lama, Vida.
In: Grasdorff, Giles. A Palavra dos Dalai Lamas. Coleção Ponto de Encontro.
Tradução de Emília Marques Rosa. Lisboa: Edições Asa, 1998. Pág. 163.
Primeiro estude as preliminares.
Considere todos os fenômenos com um sonho.
Analise a natureza não-nascida do estado desperto
O antídoto desaparecerá por si mesmo.
A natureza do caminho descansa no alaya.
Na pós-meditação, considere os fenômenos como ilusórios.
Treine em dar e receber alternadamente;
Monte ambos sobre sua meditação.
Três objetos, três venenos e três raízes de virtude.
Em todas as suas ações, treine-se com máximas.
Comece a seqüência de treinamento com você mesmo.
Quanto todo o mundo estiver cheio de males,
Coloque todas as contrariedades no caminho da liberação.
Deixe a culpa de tudo sobre um.
Reflita sobre a bondade de todos os seres.
A vacuidade é a proteção insuperável;
Então a aparência ilusória é vista como os quatro kayas.
O melhor dos métodos é ter as quatro práticas.
Para trazer o inesperado ao caminho,
Comece a treinar imediatamente.
As instruções capitais brevemente resumidas:
Coloque as cinco forças em prática.
Sobre como morrer, o Mahayana ensina estas cinco forças.
[O que] importa [é] como você age.
Todo o Dharma tem uma única meta.
Confie sobre a melhor de duas testemunhas.
Sempre seja sustentado pela alegria.
Com experiência, você poderá praticar até mesmo quando distraído.
Sempre treine nos três pontos comuns.
Mude sua atitude e a mantenha firmemente.
Não discuta fragilidades.
Não tenha opiniões sobre as ações das outras pessoas.
Trabalhe primeiro sobre a mais forte de suas máculas.
Abandone a esperança de obter resultados.
Abandone a comida envenenada.
Não seja preconceituoso por um senso de dever.
Não revide abuso com abuso.
Não espere numa emboscada.
Não golpeie na fraqueza.
Não coloque a carga de um dzo nas costas de um boi.
Não louve com motivos ocultos.
Não use mal o remédio.
Não desça um deus ao nível de um demônio.
Não tome vantagem do sofrimento.
Faça tudo com uma intenção.
Aplique um remédio em toda adversidade.
Duas coisas a serem feitas, no início e no fim.
Agüente qualquer coisa que ocorra das duas.
Mesmo que isto custe a sua vida, defenda os dois.
Treine-se nas três duras disciplinas.
Recorra aos três fatores essenciais.
Medite sobre as três coisas que não devem deteriorar.
Três coisas se mantêm inseparavelmente.
Treine imparcialmente em todo campo;
Seu treinamento deve ser profundo e permear tudo.
Sempre medite sobre o que é inevitável.
Não seja dependente de fatores externos.
Nesta hora, faça o que é importante.
Não cometa erros.
Seja consistente em sua prática.
Seja zeloso em seu treinamento.
Libere-se pela análise e pelo teste.
Não leve o que você faz muito seriamente.
Não seja mal humorado.
Não seja temperamental.
Não espere ser recompensado.
Esta essência destilada da instrução
Que transmuta a excitação das cinco degenerações
No caminho da iluminação
Foi anotado por Serlingpa.
Tendo surgido o karma do treinamento passado
E me sentindo profundamente inspirado,
Desconsiderei o sofrimento e a censura
E procurei as instruções para subjugar meu apego ao ego;
Apesar de eu poder morrer, agora não terei arrependimento.
Algumas notas sobre os versos-raiz
Primeiro ponto: a base para a prática da bodhichitta
Primeiro estude as preliminares [a preciosidade do nascimento humano, a impermanência, o karma e o sofrimento].
Segundo ponto: a bodhichitta
[A bodhichitta absoluta]
Considere todos os fenômenos com um sonho.
Analise a natureza não-nascida do estado desperto
O antídoto desaparecerá por si mesmo.
A natureza do caminho descansa no alaya.
Na pós-meditação, considere os fenômenos como ilusórios.
[A bodhichitta relativa]
Treine em dar e receber alternadamente;
Monte ambos sobre sua meditação [na meditação tonglen].
[A bodhichitta relativa na pós-meditação]
Três objetos, três venenos e três raízes de virtude.
[Os três objetos são os objetos de apego, de aversão e de indiferença.
Os três venenos correspondentes são o desejo, a raiva e a ignorância.
As três raízes de virtude são desejo de que todos os seres sejam livres dos três venenos.]
Em todas as suas ações, treine-se com máximas.
Comece a seqüência de treinamento com você mesmo.
Terceiro ponto: levando as situações difíceis para o caminho da iluminação
[A bodhichitta da aspiração relacionada à verdade relativa]
Quanto todo o mundo estiver cheio de males,
Coloque todas as contrariedades no caminho da liberação.
Deixe a culpa de tudo sobre um [único ponto: o apego ao eu].
Reflita sobre a bondade de todos os seres [que foram nossas mães].
[A bodhichitta da aspiração relacionada à verdade absoluta]
A vacuidade é a proteção insuperável;
Então a aparência ilusória é vista como os quatros kayas
[nirmanakaya, sambhogakaya, dharmakaya e svabhavikakaya].
[A bodhichitta da ação]
O melhor dos métodos é ter as quatro práticas
[acumulação de mérito, purificação da não-virtude, oferenda aos seres hostis e oferenda aos protetores do Dharma].
Para trazer o inesperado ao caminho,
Comece a treinar imediatamente.
Quarto ponto: uma explicação da prática como um modo de vida
As instruções capitais brevemente resumidas:
Coloque os cinco forças em prática [resolução de bodhichitta, familiarização pela meditação, plantar sementes positivas, repulsão ao ego e a aspiração à ação positiva].
Sobre como morrer, o Mahayana ensina estas cinco forças.
[O que] importa [é] como você age.
Quinto ponto: padrões de proficiência no treinamento da mente
Todo o Dharma tem uma única meta [subjugar o apego ao ego].
Confie sobre a melhor de duas testemunhas.
Sempre seja sustentado pela alegria.
Com experiência, você poderá praticar até mesmo quando distraído.
Sexto ponto: os compromissos do treinamento da mente
Sempre treine nos três pontos comuns [ter consistência no treinamento, não querer impressionar os outros e não ter padrões duplos como apego a alguns e aversão por outros].
Mude sua atitude [considerando os outros como mais importantes que si mesmo] e a mantenha firmemente.
Não discuta fragilidades [dos outros].
Não tenha opiniões sobre as ações das outras pessoas.
Trabalhe primeiro sobre a mais forte de suas máculas.
Abandone a esperança de obter resultados.
Abandone a comida envenenada [atos bons com objetos egoístas].
Não seja preconceituoso por um senso de dever.
Não revide abuso com abuso.
Não espere numa emboscada [não espere revidar o mal causado a nós pelos outros].
Não golpeie na fraqueza [dos outros].
Não coloque a carga de um dzo [um grande animal] nas costas de um boi.
Não louve com motivos ocultos.
Não use mal o remédio [do treinamento da mente].
Não desça um deus ao nível de um demônio.
Não tome vantagem do sofrimento.
Sétimo ponto: guias para o treinamento da mente
Faça tudo com uma intenção [altruísta].
Aplique um remédio [a bodhichitta] em toda adversidade.
Duas coisas a serem feitas, no início e no fim [lembrar da bodhichitta ao acordar e ao ir dormir].
Agüente qualquer coisa que ocorra das duas [situações boas ou ruins].
Mesmo que isto custe a sua vida, defenda os dois [dar nossa alegria aos outros e tomar os sofrimentos deles sobre si mesmo].
Treine-se nas três duras disciplinas [da atenção].
Recorra aos três fatores essenciais [encontrar um mestre qualificado, cultivar a atitude correta ao receber suas instruções e ter as condições materiais necessárias].
Medite sobre as três coisas que não devem deteriorar [devoção ao mestre, entusiasmo e bodhichitta].
Três coisas se mantêm inseparavelmente [corpo, fala e mente engajados na atividade pura].
Treine imparcialmente em todo campo;
Seu treinamento [da mente] deve ser profundo e permear tudo.
Sempre medite sobre o que é inevitável [as dificuldades].
Não seja dependente de fatores externos [como roupas e comida].
Nesta hora, faça o que é importante [a prática do Dharma].
Não cometa erros.
Seja consistente em sua prática.
Seja zeloso em seu treinamento.
Libere-se pela análise e pelo teste.
Não leve o que você faz muito seriamente.
Não seja mal humorado.
Não seja temperamental.
Não espere ser recompensado.
Esta essência destilada da instrução
Que transmuta a excitação das cinco degenerações
[os seres têm morte extemporânea causada pela fome, doença, armas e guerra; disposições maléficas; vida breve; poderosas emoções depravadas; idéias e visões errôneas]
No caminho da iluminação
Foi anotado por Serlingpa [Dharmakirti].
Tendo surgido o karma do treinamento passado
E me sentindo profundamente inspirado,
Desconsiderei o sofrimento e a censura
E procurei as instruções para subjugar meu apego ao ego;
Apesar de eu poder morrer, agora não terei arrependimento.
(Chekawa Yeshe Dorje. The seven point mind training. In: Dilgo Khyentse Rinpoche. Enlightened Courage: an explanation of Atisha's seven point mind training. Traduzido pelo Padmakara Translation Group. Ithaca: Snow Lion, 1993. Pág. 1-3.)
Primeiro estude as preliminares.
Considere todos os fenômenos com um sonho.
Analise a natureza não-nascida do estado desperto
O antídoto desaparecerá por si mesmo.
A natureza do caminho descansa no alaya.
Na pós-meditação, considere os fenômenos como ilusórios.
Treine em dar e receber alternadamente;
Monte ambos sobre sua meditação.
Três objetos, três venenos e três raízes de virtude.
Em todas as suas ações, treine-se com máximas.
Comece a seqüência de treinamento com você mesmo.
Quanto todo o mundo estiver cheio de males,
Coloque todas as contrariedades no caminho da liberação.
Deixe a culpa de tudo sobre um.
Reflita sobre a bondade de todos os seres.
A vacuidade é a proteção insuperável;
Então a aparência ilusória é vista como os quatro kayas.
O melhor dos métodos é ter as quatro práticas.
Para trazer o inesperado ao caminho,
Comece a treinar imediatamente.
As instruções capitais brevemente resumidas:
Coloque as cinco forças em prática.
Sobre como morrer, o Mahayana ensina estas cinco forças.
[O que] importa [é] como você age.
Todo o Dharma tem uma única meta.
Confie sobre a melhor de duas testemunhas.
Sempre seja sustentado pela alegria.
Com experiência, você poderá praticar até mesmo quando distraído.
Sempre treine nos três pontos comuns.
Mude sua atitude e a mantenha firmemente.
Não discuta fragilidades.
Não tenha opiniões sobre as ações das outras pessoas.
Trabalhe primeiro sobre a mais forte de suas máculas.
Abandone a esperança de obter resultados.
Abandone a comida envenenada.
Não seja preconceituoso por um senso de dever.
Não revide abuso com abuso.
Não espere numa emboscada.
Não golpeie na fraqueza.
Não coloque a carga de um dzo nas costas de um boi.
Não louve com motivos ocultos.
Não use mal o remédio.
Não desça um deus ao nível de um demônio.
Não tome vantagem do sofrimento.
Faça tudo com uma intenção.
Aplique um remédio em toda adversidade.
Duas coisas a serem feitas, no início e no fim.
Agüente qualquer coisa que ocorra das duas.
Mesmo que isto custe a sua vida, defenda os dois.
Treine-se nas três duras disciplinas.
Recorra aos três fatores essenciais.
Medite sobre as três coisas que não devem deteriorar.
Três coisas se mantêm inseparavelmente.
Treine imparcialmente em todo campo;
Seu treinamento deve ser profundo e permear tudo.
Sempre medite sobre o que é inevitável.
Não seja dependente de fatores externos.
Nesta hora, faça o que é importante.
Não cometa erros.
Seja consistente em sua prática.
Seja zeloso em seu treinamento.
Libere-se pela análise e pelo teste.
Não leve o que você faz muito seriamente.
Não seja mal humorado.
Não seja temperamental.
Não espere ser recompensado.
Esta essência destilada da instrução
Que transmuta a excitação das cinco degenerações
No caminho da iluminação
Foi anotado por Serlingpa.
Tendo surgido o karma do treinamento passado
E me sentindo profundamente inspirado,
Desconsiderei o sofrimento e a censura
E procurei as instruções para subjugar meu apego ao ego;
Apesar de eu poder morrer, agora não terei arrependimento.
Algumas notas sobre os versos-raiz
Primeiro ponto: a base para a prática da bodhichitta
Primeiro estude as preliminares [a preciosidade do nascimento humano, a impermanência, o karma e o sofrimento].
Segundo ponto: a bodhichitta
[A bodhichitta absoluta]
Considere todos os fenômenos com um sonho.
Analise a natureza não-nascida do estado desperto
O antídoto desaparecerá por si mesmo.
A natureza do caminho descansa no alaya.
Na pós-meditação, considere os fenômenos como ilusórios.
[A bodhichitta relativa]
Treine em dar e receber alternadamente;
Monte ambos sobre sua meditação [na meditação tonglen].
[A bodhichitta relativa na pós-meditação]
Três objetos, três venenos e três raízes de virtude.
[Os três objetos são os objetos de apego, de aversão e de indiferença.
Os três venenos correspondentes são o desejo, a raiva e a ignorância.
As três raízes de virtude são desejo de que todos os seres sejam livres dos três venenos.]
Em todas as suas ações, treine-se com máximas.
Comece a seqüência de treinamento com você mesmo.
Terceiro ponto: levando as situações difíceis para o caminho da iluminação
[A bodhichitta da aspiração relacionada à verdade relativa]
Quanto todo o mundo estiver cheio de males,
Coloque todas as contrariedades no caminho da liberação.
Deixe a culpa de tudo sobre um [único ponto: o apego ao eu].
Reflita sobre a bondade de todos os seres [que foram nossas mães].
[A bodhichitta da aspiração relacionada à verdade absoluta]
A vacuidade é a proteção insuperável;
Então a aparência ilusória é vista como os quatros kayas
[nirmanakaya, sambhogakaya, dharmakaya e svabhavikakaya].
[A bodhichitta da ação]
O melhor dos métodos é ter as quatro práticas
[acumulação de mérito, purificação da não-virtude, oferenda aos seres hostis e oferenda aos protetores do Dharma].
Para trazer o inesperado ao caminho,
Comece a treinar imediatamente.
Quarto ponto: uma explicação da prática como um modo de vida
As instruções capitais brevemente resumidas:
Coloque os cinco forças em prática [resolução de bodhichitta, familiarização pela meditação, plantar sementes positivas, repulsão ao ego e a aspiração à ação positiva].
Sobre como morrer, o Mahayana ensina estas cinco forças.
[O que] importa [é] como você age.
Quinto ponto: padrões de proficiência no treinamento da mente
Todo o Dharma tem uma única meta [subjugar o apego ao ego].
Confie sobre a melhor de duas testemunhas.
Sempre seja sustentado pela alegria.
Com experiência, você poderá praticar até mesmo quando distraído.
Sexto ponto: os compromissos do treinamento da mente
Sempre treine nos três pontos comuns [ter consistência no treinamento, não querer impressionar os outros e não ter padrões duplos como apego a alguns e aversão por outros].
Mude sua atitude [considerando os outros como mais importantes que si mesmo] e a mantenha firmemente.
Não discuta fragilidades [dos outros].
Não tenha opiniões sobre as ações das outras pessoas.
Trabalhe primeiro sobre a mais forte de suas máculas.
Abandone a esperança de obter resultados.
Abandone a comida envenenada [atos bons com objetos egoístas].
Não seja preconceituoso por um senso de dever.
Não revide abuso com abuso.
Não espere numa emboscada [não espere revidar o mal causado a nós pelos outros].
Não golpeie na fraqueza [dos outros].
Não coloque a carga de um dzo [um grande animal] nas costas de um boi.
Não louve com motivos ocultos.
Não use mal o remédio [do treinamento da mente].
Não desça um deus ao nível de um demônio.
Não tome vantagem do sofrimento.
Sétimo ponto: guias para o treinamento da mente
Faça tudo com uma intenção [altruísta].
Aplique um remédio [a bodhichitta] em toda adversidade.
Duas coisas a serem feitas, no início e no fim [lembrar da bodhichitta ao acordar e ao ir dormir].
Agüente qualquer coisa que ocorra das duas [situações boas ou ruins].
Mesmo que isto custe a sua vida, defenda os dois [dar nossa alegria aos outros e tomar os sofrimentos deles sobre si mesmo].
Treine-se nas três duras disciplinas [da atenção].
Recorra aos três fatores essenciais [encontrar um mestre qualificado, cultivar a atitude correta ao receber suas instruções e ter as condições materiais necessárias].
Medite sobre as três coisas que não devem deteriorar [devoção ao mestre, entusiasmo e bodhichitta].
Três coisas se mantêm inseparavelmente [corpo, fala e mente engajados na atividade pura].
Treine imparcialmente em todo campo;
Seu treinamento [da mente] deve ser profundo e permear tudo.
Sempre medite sobre o que é inevitável [as dificuldades].
Não seja dependente de fatores externos [como roupas e comida].
Nesta hora, faça o que é importante [a prática do Dharma].
Não cometa erros.
Seja consistente em sua prática.
Seja zeloso em seu treinamento.
Libere-se pela análise e pelo teste.
Não leve o que você faz muito seriamente.
Não seja mal humorado.
Não seja temperamental.
Não espere ser recompensado.
Esta essência destilada da instrução
Que transmuta a excitação das cinco degenerações
[os seres têm morte extemporânea causada pela fome, doença, armas e guerra; disposições maléficas; vida breve; poderosas emoções depravadas; idéias e visões errôneas]
No caminho da iluminação
Foi anotado por Serlingpa [Dharmakirti].
Tendo surgido o karma do treinamento passado
E me sentindo profundamente inspirado,
Desconsiderei o sofrimento e a censura
E procurei as instruções para subjugar meu apego ao ego;
Apesar de eu poder morrer, agora não terei arrependimento.
(Chekawa Yeshe Dorje. The seven point mind training. In: Dilgo Khyentse Rinpoche. Enlightened Courage: an explanation of Atisha's seven point mind training. Traduzido pelo Padmakara Translation Group. Ithaca: Snow Lion, 1993. Pág. 1-3.)
A base absolutamente essencial para a prática do budismo em sua forma tibetana é o desenvolvimento da Mente da Iluminação, ou Bodhichitta. A Bodhichitta não é somente um tipo de altruísmo: ela consiste do voto de nós mesmos atingirmos a perfeição para levarmos todos os seres lá.
Todos os seres vivos, sem exceção, desejam obter a felicidade e evitar o sofrimento. Porém, é impossível obter felicidade real sem tomar conta do bem estar dos outros. Portanto, uma das chaves para a prática espiritual é compreender que nossa felicidade existe através da felicidade dos outros; e mesmo a felicidade dos outros é mais importante do que a nossa própria. Entretanto, não é uma questão de sacrificar a nossa própria felicidade; quando se ceifa o trigo, também se obtém a palha. Do mesmo modo, se cuidamos essencialmente da felicidade dos outros, a nossa virá naturalmente. Para fazer isso, é necessário relaxar a influência que o desejo egocêntrico pelo prazer tem sobre a nossa mente. Adquirimos, durante numerosas vidas passadas, o hábito de sermos o centro de nossas preocupações. Para nos livrarmos desse estrangulamento, precisamos nos abrir aos outros.
Vamos desenhar uma linha, nos colocarmos de um lado dela, e colocar todos os outros seres do outro lado. Não fica claro que a felicidade dessa multidão de seres é mais importante do que apenas a nossa? Procurar a própria felicidade às custas do sofrimento desse grande número de seres é, claramente, uma abordagem totalmente errada. Por outro lado, trazer o bem-estar para todos os seres, mesmo às custas do sofrimento e dificuldade para si mesmo, um único ser, não é realmente um problema.
Podemos ver que as pessoas que são mais abertas aos outros são também aquelas às quais os outros são mais amigáveis. Alguém que fica mal humorado o tempo todo, pensando apenas em sua felicidade imediata, não pode esperar que alguém sorria para ele como se fosse um vizinho ou um amigo. Ao se fechar aos outros, fecha-se à porta para a sua própria felicidade. A ternura, o amor e a bondade não são qualidades que precisamos fabricar, pedaço por pedaço, como se fossem novos fatores que deveríamos introduzir em nosso ser. A experiência mostra que eles são parte da natureza essencial de todos os seres vivos. Precisamos apenas deixar este potencial, inerente dentro de nós, se desenvolver e se expressar livremente.
A expressão destas qualidades é um processo que requer uma profunda transformação. De fato, somos mais como um rolo de papel que ficou enrolado por um longo tempo. Se o desenrolamos, o papel enrola-se novamente assim que tiramos nossas mãos. Por muito tempo, temos nos colocado como a dianteira de nossa mente. Então, algum tempo e alguma perseverança são necessários para substituirmos estas tendências egoístas por uma preocupação com o bem-estar de todos os outros. Porém, já que temos esta natureza perfeita, este potencial está presente em cada ser, assim como o óleo de gergelim está presente na semente de gergelim, e é possível de nós trazermos estas qualidades à fruição.
O budismo distingue — e esta é uma importante divisão — dois aspectos da realidade: o relativo e o absoluto. Enquanto não tivermos atingido a compreensão, nadamos no mar da verdade relativa. Experimentamos a ilusão do sofrimento, a ilusão do caminho e a ilusão da liberação. Do ponto de vista da verdade absoluta, tudo isto é apenas uma ilusão. Porém, para nós, que estamos mergulhados nela, realmente é verdade. Então, temos de usar os caminhos e meios da verdade relativa para sair disto, e por isso meditamos sobre a Bodhichitta. Também poderíamos perguntar a nós mesmos, "Se temos a natureza de Buddha, de onde vem o apego a nós mesmos?" Esta é uma pergunta importante de se fazer, já que é a partir desta noção de entidade que nós nos concedemos e nos projetamos sobre os fenômenos que nos cercam; é a partir desta noção que a primeira manifestação de ignorância é nascida.
Temos um sentimento inato de um Eu, e nos apegamos à sua existência como se fosse uma entidade sólida, presente dentro de nós. Dê uma olhada nele: o Eu está no corpo, é parte de nossa pele, de nossos ossos, de nossa carne? Ele é encontrado no coração, ou na mente?
Vemos facilmente que o ego não faz parte do corpo. De fato, basta remover a vida do corpo para que a noção do Eu desapareça. Se separarmos a pele, os ossos, os órgãos etc., nada encontraremos que possa ser descrito como um Eu. Se pensarmos que o Eu forma uma parte da mente, analise-a do mesmo modo. O que chamamos de mente é apenas uma sucessão de instantes de consciência. O pensamento passado está morto, o pensamento futuro nem existe ainda, e o pensamento presente não pode ser tocado.
Portanto, não há qualquer entidade dentro da consciência que possa ser descrita como o Eu. A única coisa que podemos dizer sobre a mente é que ela é um fluxo, uma continuidade, um rio no qual não se pode isolar qualquer entidade. Que grande descoberta é reconhecer que, de fato, aquilo ao qual estávamos tão apegados, e que dava surgimento a tantos pensamentos, não tem existência própria!
Do mesmo modo, a análise do mundo dos fenômenos mostra que nenhuma entidade permanente é encontrada. O aspecto absoluto da Bodhichitta significa permanecer em um estado de contemplação no qual nenhuma entidade é encontrada, tanto no indivíduo quanto no mundo dos fenômenos.
Porém, esta Bodhichitta absoluta não é diretamente acessível. Apesar de se poder compreendê-la intelectualmente, não é fácil realizá-la de um modo que se torne parte integral de si mesmo. Para fazer isso, primeiro é indispensável proceder através do desenvolvimento da Bodhichitta em seu aspecto relativo. Pouco a pouco, precisamos desenvolver a bondade — o desejo de que todos os seres sejam felizes e possuam as causas da felicidade — e também a compaixão — o desejo de que todos os seres sejam liberados do sofrimento. É possível que, durante esta prática, possamos nos confrontar com dificuldades que se originam no apego de nossa mente à realidade dos fenômenos.
Neste evento, seria útil retornar à meditação sobre a verdade absoluta, para dissolver a solidez que atribuímos aos fenômenos. Alternando assim os períodos de meditação sobre a verdade absoluta com o desenvolvimento das qualidades altruístas — baseadas na verdade relativa — e combinando estas duas verdades — vistas como inseparáveis — podemos avançar sem obstáculos sobre o caminho.
Para atingir a realização destes dois aspectos da Bodhichitta, é necessário respeitar as regras da viagem. Nas palavras do Buddha, "Abandone as más ações, pratique bem a virtude, dome sua mente: este é o ensinamento do Buddha". É importante compreender o que se quer dizer com ações positivas e negativas. Não significa algum conceito abstrato de bem e mal definido, independente de qualquer resultado externo. Um ato positivo produz felicidade, serenidade, para si mesmo e para os outros, enquanto um ato negativo produz sofrimento. Este definição é extremamente prática; é baseada sobre resultados. Conhecer os mecanismos da causa e efeito que conduzem à felicidade e ao sofrimento é um dos pontos fundamentais do budismo. Além disso, já que a origem de cada ato ou palavra, positivo ou negativo, está em um pensamento, a primeira coisa a se fazer é ter maestria sobre a mente.
Para nos abrirmos a este estado de mente altruísta, devemos antes de tudo considerar que o bem-estar dos outros é tão importante quanto o nosso; assim, pouco a pouco, o bem-estar dos outros se torna mais importante do que o nosso. Por este motivo, podemos usar uma prática extremamente simples e efetiva, aliada ao ritmo de nossa respiração. Ao expirar, enviamos os todos os atos positivos e qualidades que adquirimos a todos os seres. Ao inspirar, pensamos que estamos assumindo todos os seus sofrimentos e suas causas.
É claro que não é uma questão de efetivamente sofrer no lugar dos outros. Porém, esta prática é essencial se quisermos nos abrir aos outros, porque ela nos dá grande coragem e força. Confrontada com uma situação difícil, doença, sofrimento físico ou mental, deve expressar o desejo, "Devido às dificuldades pelas quais estou passando agora, possam todas aquelas dificuldades vivenciada pelos outros — talvez maiores que as minhas — ser exauridas. Possam as minhas dificuldades ser um resgate pelas dos outros”.Graças a essa atitude de altruísmo, o sofrimento não tem mais o mesmo efeito sobre nós, tornando-se mais leve e mais fácil de se lidar, e sentimos uma grande coragem.
Por outro lado, se tudo está indo bem, se estamos com boa saúde e em paz, é importante não desfrutar desta situação de modo egoísta. Ofereça-a todos os seres, desejando que todos desfrutem da mesma paz como nós. Então, este estado de paz assumirá uma dimensão muito mais vasta.
Este processo de troca não deve ser limitado aos aspectos manifestos da felicidade e do sofrimento; deve ser estendido às suas causas, às emoções perturbadoras, tais como o ódio, o desejo, a inveja, o orgulho e a falta de discernimento, ou ignorância. Então, quando quaisquer destas emoções nascer em nossa mente, devemos lembrar que é não apenas a causa de nosso próprio sofrimento, mas também do sofrimento de um grande número de seres. Pense o seguinte: "Possam todas as emoções similares, que preenchem a mente dos seres, ser exauridas graças à minha”.
Treinando-nos deste modo, progressivamente adquirimos grande força mental, nos tornamos menos vulneráveis às emoções e nos livramos da ansiedade. Quaisquer sejam as circunstâncias externas ou emoções que surjam em nossa mente, estamos assim certos de sermos capazes de dissolvê-las. Mesmo se surgir um grande número delas, podemos ser como um bravo guerreiro, apropriando-se sem medo do campo de batalha.
Em resumo, o modo pelo qual as circunstâncias externas nos afetam não depende nem de sua natureza nem de sua intensidade; depende unicamente de nós mesmos. Circunstâncias idênticas afetam diferentes pessoas de diversos modos diferentes, dependendo de sua solidez ou vulnerabilidade.
Alguém que desenvolveu este tipo de coragem altruísta será muito pouco afetado pelas diferenças externas que perturbariam qualquer outra pessoa, destruindo completamente sua paz interior. Então, não é o mundo que devemos mudar, mas sim a nossa mente.
O que é verdade para o sofrimento também é para a felicidade. Não podemos esperar que a felicidade venha de fatores externos, como bens materiais, glória, fama ou poder. Todos sabemos que as pessoas mais ricas e poderosas são muitas vezes as mais atormentadas. Então, não é cercando a si mesmo com condições externas aparentemente favoráveis que nós poderemos atingir a serenidade real. Essa paz e felicidade devem vir de dentro, e nós devemos construí-las e desenvolvê-las. Uma vez que tenhamos atingido este estado de paz, nada e ninguém poderão tirá-lo novamente de nós.
(Shechen Rabjan Rinpoche. Enlightened Mind.
In: Adarsha, nº 2. Lisboa: Ogyen Kunzang Chöling, 1996. Pág. 41-50.)
Pema Chökyi Drönma (Chagdud Khadro) é a esposa de S.E. Chagdud Tulku Rinpoche e sua aluna há mais de vinte anos, tendo sido sua primeira discípula ocidental.
Chagdud Khadro nasceu no Texas, Estados Unidos. Ela foi autorizada a dar ensinamentos em 1985, e em 1995 foi ordenada Lama. Chagdud Khadro ensina práticas dos estados do desenvolvimento e completação do Vajrayana, enfocando particularmente os ensinamentos tibetanos sobre a morte e sobre P'howa, a transferência de consciência na hora da morte. Ela tem a autorização para dar certas iniciações do Vajrayana e supervisionará o Chagdud Gonpa Brasil no futuro.
Começamos o processo de desenvolver uma perspectiva espiritual através da contemplação da preciosa oportunidade de havermos obtido um prendado nascimento humano, como uma base de trabalho para o desenvolvimento espiritual.
Nosso corpo pode ser comparado a um barco e nossa mente, a seu capitão. Se os utilizarmos bem, poderemos cruzar as traiçoeiras correntezas da existência cíclica até as margens da verdade absoluta. Obter essa excelente oportunidade e não fazer uso dela representa um enorme desperdício, como se tivéssemos viajado a uma ilha de jóias que realizam desejos e não houvéssemos trazido nenhuma de volta conosco. Que arrependimento sentiríamos!
Tal renascimento representa o culminar de grande virtude e fervente aspiração de seguir na prática espiritual. Isso não significa que não haja dificuldades e frustrações. Temos que suportar o nascimento, a doença, a velhice e a morte e, muitas vezes, não podemos obter o que queremos, ou evitar o que não queremos ou manter o que temos. Contudo, usufruímos dezoito liberdades e condições favoráveis, resumidas no termo tibetano dal djor, dal aludindo ao fato de estarmos livres das oito condições desfavoráveis, djor, de sermos dotados de dez condições favoráveis.
Sermos dotados das oito liberdades significa que estamos livres das circunstâncias que tornam a conexão com o Dharma quase impossível. Elas incluem o fato de estarmos livres do renascimento como um ser dos infernos, um espírito carente, ou animal, o que implica num insuportável sofrimento; do renascimento entre os deuses de longa vida, que nos seduz com irresistíveis prazeres dos sentidos (nos reinos inferiores dos deuses) e estados agradáveis de consciência (nos reinos superiores dos deuses); do renascimento numa cultura perniciosa, que admite a violência e o mal, e nos exclui do contacto com o Dharma sagrado; do renascimento com visões erróneas, que nos façam depreciar o que é sagrado e benéfico e apreciar o que é prejudicial; do renascimento numa era obscura, na qual nenhum Buddha tenha se manifestado, privando-nos de um caminho espiritual; e, finalmente, do renascimento com deficiências físicas ou mentais tão severas, que nos impossibilitassem de ouvir ou compreender os ensinamentos.
As dez condições favoráveis dividem-se em duas categorias. A primeira inclui condições que correspondem à situação particular da pessoa: ter nascido como ser humano, morar num lugar onde o Dharma pode ser encontrado, ter todas as faculdades em pleno funcionamento, não ter cometido crimes infames (como ferir um Buddha, matar pai ou mãe, ou causar uma forte cisão na sangha), e ter confiança na doutrina moral do Buddha como a fundação de todas as qualidades positivas. A segunda categoria inclui condições que definem o contexto geral no qual o desenvolvimento espiritual ocorrer: o surgimento de um Buddha no mundo, o ensinamento da doutrina, a qualidade de duração da doutrina, a oportunidade de praticar os ensinamentos e a presença de professores, cuja compaixão altruísta e amor sustentem o empenho espiritual da pessoa.
A extrema dificuldade de se encontrar um renascimento plenamente dotado de todas as liberdades e condições favoráveis no reino humano é ilustrada por determinadas metáforas. Por exemplo, diz-se que o número de seres dos infernos comparado ao de seres humanos, é como o número de partículas de poeira nessa terra comparado ao de partículas de poeira sob a unha de um dedo. O número de seres humanos indiferentes à espiritualidade comparada ao daqueles que a buscam, é como a multiplicidade de estrelas que podem ser vista a noite comparada àquelas que são vistas durante o dia, e entre os que buscam o caminho espiritual, aqueles que o praticam com seriedade são ainda muito mais raros.
Outra forma de pensar sobre a dificuldade de se encontrar um renascimento humano, envolve a imagem de todo o universo como sendo um vasto oceano. Na superfície desse oceano, há uma bóia que flutua jogada pelos ventos e correntes e, nas profundezas desse oceano, nada uma tartaruga cega que sobe à superfície uma vez por século. As chances de se encontrar um renascimento humano são iguais às probabilidades que tem a tartaruga cega, que sobe à superfície a cada cem anos, de encaixar sua cabeça no centro dessa bóia que flutua no oceano universal.
Os ocidentais freqüentemente acreditam que uma pessoa renasce como ser humano vez após vez, e tendem a considerar suas vidas passadas como uma série de aventuras fascinantes que estão além da memória. No entanto, na verdade, todos tivemos uma interminável variedade de renascimentos desde o primórdio sem princípio da existência, cada qual um exato reflexo de nosso karma, e muito poucos deles como seres humanos.
Nosso corpo é uma entidade composta que se desintegra em pó com a morte. A mente é insubstancial, mas tem uma poderosa continuidade. Tanto sua natureza imutável quanto suas tendências kármicas continuam através dos ciclos de morte e renascimento. Temos somente que inspecionar os pensamentos que nos vêm à mente, para constatar que só uma pequena fração deles são do tipo que geram um karma afortunado o suficiente para obtermos um nascimento humano plenamente dotado. A maioria dos pensamentos está maculada pelo apego e pela aversão. Até os pensamentos sutilmente envenenados podem impedir um renascimento auspicioso, mas os piores pensamentos, repletos de violenta raiva, podem nos impelir a um renascimento nos infernos.
Patrul Rinpoche compreendeu claramente a subtil conexão entre pensamentos, karma e renascimento. Teve uma vida simples e ascética, freqüentemente viajando, sem nunca levar muitas coisas consigo, ouvindo ensinamentos de muitos lamas. Algumas vezes esses lamas não faziam idéia que o humilde monge, que ouvia seus discursos com tanta intenção, era o renomado escolástico Patrul Rinpoche, pois ele não dizia seu nome, nem demonstrava seu status com um dos mais reverenciados lamas de sua geração.
Um dia ele parou numa campina. Enquanto descansava, desfrutando o céu azul e o tapete de flores que cobria a terra, pensou: "Que lindo!" No próximo minuto, acrescentou: "Que eu não renasça aqui!" Mais tarde explicou que o apego à beleza do lugar poderia levar a um renascimento ali, possivelmente como um animal, talvez até como um inseto, já que ali não havia habitantes humanos.
Se contemplarmos profundamente a preciosidade do nascimento humano, nos inspiraremos a fazer bom uso dele com o seu insuperável potencial para a iluminação. Tomá-lo como certo causará um pesar incomensurável. No tempo que nos resta, devemos treinar nossa mente e vencer os pensamentos indomáveis, antes que se proliferem nas incontáveis formas de samsara.
(Khadro, Chagdud. Práticas Preliminares do Budismo Vajrayana: Instruções para o Dudjom Tersar Ngöndro
Compiladas dos ensinamentos de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche por Chagdud Khadro.
Trad. Clarita Maia, rev. Cândida Bastos. Porto Alegre: Rigdzin, 1997. Pág. 37-40)