Pema Chökyi Drönma (Chagdud Khadro) é a esposa de S.E. Chagdud Tulku Rinpoche e sua aluna há mais de vinte anos, tendo sido sua primeira discípula ocidental.
Chagdud Khadro nasceu no Texas, Estados Unidos. Ela foi autorizada a dar ensinamentos em 1985, e em 1995 foi ordenada Lama. Chagdud Khadro ensina práticas dos estados do desenvolvimento e completação do Vajrayana, enfocando particularmente os ensinamentos tibetanos sobre a morte e sobre P'howa, a transferência de consciência na hora da morte. Ela tem a autorização para dar certas iniciações do Vajrayana e supervisionará o Chagdud Gonpa Brasil no futuro.
Começamos o processo de desenvolver uma perspectiva espiritual através da contemplação da preciosa oportunidade de havermos obtido um prendado nascimento humano, como uma base de trabalho para o desenvolvimento espiritual.
Nosso corpo pode ser comparado a um barco e nossa mente, a seu capitão. Se os utilizarmos bem, poderemos cruzar as traiçoeiras correntezas da existência cíclica até as margens da verdade absoluta. Obter essa excelente oportunidade e não fazer uso dela representa um enorme desperdício, como se tivéssemos viajado a uma ilha de jóias que realizam desejos e não houvéssemos trazido nenhuma de volta conosco. Que arrependimento sentiríamos!
Tal renascimento representa o culminar de grande virtude e fervente aspiração de seguir na prática espiritual. Isso não significa que não haja dificuldades e frustrações. Temos que suportar o nascimento, a doença, a velhice e a morte e, muitas vezes, não podemos obter o que queremos, ou evitar o que não queremos ou manter o que temos. Contudo, usufruímos dezoito liberdades e condições favoráveis, resumidas no termo tibetano dal djor, dal aludindo ao fato de estarmos livres das oito condições desfavoráveis, djor, de sermos dotados de dez condições favoráveis.
Sermos dotados das oito liberdades significa que estamos livres das circunstâncias que tornam a conexão com o Dharma quase impossível. Elas incluem o fato de estarmos livres do renascimento como um ser dos infernos, um espírito carente, ou animal, o que implica num insuportável sofrimento; do renascimento entre os deuses de longa vida, que nos seduz com irresistíveis prazeres dos sentidos (nos reinos inferiores dos deuses) e estados agradáveis de consciência (nos reinos superiores dos deuses); do renascimento numa cultura perniciosa, que admite a violência e o mal, e nos exclui do contacto com o Dharma sagrado; do renascimento com visões erróneas, que nos façam depreciar o que é sagrado e benéfico e apreciar o que é prejudicial; do renascimento numa era obscura, na qual nenhum Buddha tenha se manifestado, privando-nos de um caminho espiritual; e, finalmente, do renascimento com deficiências físicas ou mentais tão severas, que nos impossibilitassem de ouvir ou compreender os ensinamentos.
As dez condições favoráveis dividem-se em duas categorias. A primeira inclui condições que correspondem à situação particular da pessoa: ter nascido como ser humano, morar num lugar onde o Dharma pode ser encontrado, ter todas as faculdades em pleno funcionamento, não ter cometido crimes infames (como ferir um Buddha, matar pai ou mãe, ou causar uma forte cisão na sangha), e ter confiança na doutrina moral do Buddha como a fundação de todas as qualidades positivas. A segunda categoria inclui condições que definem o contexto geral no qual o desenvolvimento espiritual ocorrer: o surgimento de um Buddha no mundo, o ensinamento da doutrina, a qualidade de duração da doutrina, a oportunidade de praticar os ensinamentos e a presença de professores, cuja compaixão altruísta e amor sustentem o empenho espiritual da pessoa.
A extrema dificuldade de se encontrar um renascimento plenamente dotado de todas as liberdades e condições favoráveis no reino humano é ilustrada por determinadas metáforas. Por exemplo, diz-se que o número de seres dos infernos comparado ao de seres humanos, é como o número de partículas de poeira nessa terra comparado ao de partículas de poeira sob a unha de um dedo. O número de seres humanos indiferentes à espiritualidade comparada ao daqueles que a buscam, é como a multiplicidade de estrelas que podem ser vista a noite comparada àquelas que são vistas durante o dia, e entre os que buscam o caminho espiritual, aqueles que o praticam com seriedade são ainda muito mais raros.
Outra forma de pensar sobre a dificuldade de se encontrar um renascimento humano, envolve a imagem de todo o universo como sendo um vasto oceano. Na superfície desse oceano, há uma bóia que flutua jogada pelos ventos e correntes e, nas profundezas desse oceano, nada uma tartaruga cega que sobe à superfície uma vez por século. As chances de se encontrar um renascimento humano são iguais às probabilidades que tem a tartaruga cega, que sobe à superfície a cada cem anos, de encaixar sua cabeça no centro dessa bóia que flutua no oceano universal.
Os ocidentais freqüentemente acreditam que uma pessoa renasce como ser humano vez após vez, e tendem a considerar suas vidas passadas como uma série de aventuras fascinantes que estão além da memória. No entanto, na verdade, todos tivemos uma interminável variedade de renascimentos desde o primórdio sem princípio da existência, cada qual um exato reflexo de nosso karma, e muito poucos deles como seres humanos.
Nosso corpo é uma entidade composta que se desintegra em pó com a morte. A mente é insubstancial, mas tem uma poderosa continuidade. Tanto sua natureza imutável quanto suas tendências kármicas continuam através dos ciclos de morte e renascimento. Temos somente que inspecionar os pensamentos que nos vêm à mente, para constatar que só uma pequena fração deles são do tipo que geram um karma afortunado o suficiente para obtermos um nascimento humano plenamente dotado. A maioria dos pensamentos está maculada pelo apego e pela aversão. Até os pensamentos sutilmente envenenados podem impedir um renascimento auspicioso, mas os piores pensamentos, repletos de violenta raiva, podem nos impelir a um renascimento nos infernos.
Patrul Rinpoche compreendeu claramente a subtil conexão entre pensamentos, karma e renascimento. Teve uma vida simples e ascética, freqüentemente viajando, sem nunca levar muitas coisas consigo, ouvindo ensinamentos de muitos lamas. Algumas vezes esses lamas não faziam idéia que o humilde monge, que ouvia seus discursos com tanta intenção, era o renomado escolástico Patrul Rinpoche, pois ele não dizia seu nome, nem demonstrava seu status com um dos mais reverenciados lamas de sua geração.
Um dia ele parou numa campina. Enquanto descansava, desfrutando o céu azul e o tapete de flores que cobria a terra, pensou: "Que lindo!" No próximo minuto, acrescentou: "Que eu não renasça aqui!" Mais tarde explicou que o apego à beleza do lugar poderia levar a um renascimento ali, possivelmente como um animal, talvez até como um inseto, já que ali não havia habitantes humanos.
Se contemplarmos profundamente a preciosidade do nascimento humano, nos inspiraremos a fazer bom uso dele com o seu insuperável potencial para a iluminação. Tomá-lo como certo causará um pesar incomensurável. No tempo que nos resta, devemos treinar nossa mente e vencer os pensamentos indomáveis, antes que se proliferem nas incontáveis formas de samsara.
(Khadro, Chagdud. Práticas Preliminares do Budismo Vajrayana: Instruções para o Dudjom Tersar Ngöndro
Compiladas dos ensinamentos de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche por Chagdud Khadro.
Trad. Clarita Maia, rev. Cândida Bastos. Porto Alegre: Rigdzin, 1997. Pág. 37-40)
-
21 de janeiro de 2010 às 15:30